Desempacotando a discoteca: Murilo Mendes e a música

Por Antonia Javiera Cabrera Muñoz *
Universidade Federal de Santa Catarina. Florianápolis, Brasil

Para gozar dela plenamente,
não é suficiente escutar música.
É preciso falar, e gostar de falar de música.

Eric Rohmer

O caos toma sentido
visto da janela cosmorâmica
onde ele se debruça
para dentro para fora para o alto
para o fundo
para a organização do delírio
em código de poesia
.
Carlos Drummond de Andrade

Murilo Mendes ouvindo musica, do pintor hungaro Arpad Szenes

Desde sempre a música esteve presente em Murilo Mendes (1901-1975), poeta brasileiro nascido em Juiz de Fora, Minas Gerais, no começo do século XX, que ele mesmo definiu como um "trecho de terra cercado de piano por todos os lados". Já na infância Murilo teve suas primeiras experiências com a música:

No princípio quero pegar o som. Isidoro passa-me a flauta, é preta com uns enfeites prateados, reviro-a de todo o jeito, Isidoro cadê o som, responde: o som está escondido na minha boca e no oco da flauta mas eu aperto ele com as mãos; Isidoro ri, sadio, parece que tem 64 dentes, branquíssimos. Isidoro cadê o som? Isidoro sem dúvida está mordendo o som. Corro para lá para cá, vejo um começo de incêndio no morro do Imperador, julgo que o morro acendeu um fósforo. Cadê o som? Isidoro querendo me sossegar diz que o som correu pra apagar o fogo mas vorta já. 1

Quando se mudou para o Rio de Janeiro, em 1921, convidava os amigos para escutar duas horas diárias de música quase que inteiramente dedicadas a Bach e a Mozart. Fanático por Mozart, chegou a enviar um telegrama a Hitler: "Apenas recebida a notícia da ocupação de Salzburgo pelas tropas nazistas, expedi a Hitler o seguinte despacho: 'EM NOME MOZART PROTESTO CONTRA INVASÃO MILITAR SALZBURGO. MURILO MENDES'".

Capa do livro Formaçao de discoteca

Entre 1946 e 1947, o poeta publicou uma série de crônicas e artigos sobre música clássica para a revista Letras e Artes, suplemento de A manhã (RJ) 2 . Como admirador e aguçado ouvinte, pretendia levar, ao público leitor destas crônicas e artigos, a prática da escuta da música clássica - prática esta que está longe de ser passiva: "Não basta ouvir música assim como se ouve um eco distante: é necessário participar de sua vida própria, fazê-la circular dentro de nós", desafia-nos em um dos aforismos do livro O discípulo de Emaús (1945). Porém, para além das obras incluídas e dos critérios adotados, um dos fatores que torna estes escritos fascinantes é a própria abordagem que Murilo Mendes adota nos textos. Em meio aos comentários sobre os compositores e as obras que deveriam formar a discoteca, Murilo entrelaça outros assuntos relacionados com a música. Assim, interessa relacionar o aspecto musical ao intelectual, ao cultural e, sobretudo, ao educativo, a "renovação e reeducação que é a música". Preocupado com o tempo em que está inserido, com seus altos e baixos, Murilo se motiva a escrever. O poeta dedica crônicas inteiras às incompreensões de termos como "virtuosidade", "música moderna" e de músicos como Debussy, Stravinsky, Manuel de Falla e Villa-Lobos. Além disso, suas observações chegam às demais artes, como a dança e a poesia. Sobre a poesia, é possível a leitura de inúmeras informações sobre a poética do autor. O crítico Júlio Castañon Guimarães, em capítulo sobre "A Tessitura Musical" 3 , realiza essa aproximação entre a música e a poesia muriliana, afirmando que "sem ter em mente os problemas musicais a que ele [Murilo] se refere, dificilmente se perceberá a maneira como a música algumas vezes se faz presente em sua poesia". Esta presença, conforme Guimarães, se daria na "tensão entre o nível de informação referencial e o nível de atuação de linguagem, que implica informação estética".

Retrato de Murilo Mendes, do pintor brasileiro Alberto Guignard

Para verificar a presença da música em sua poesia, tomem-se algumas referências. Logo na primeira crônica, Murilo menciona que quatro grandes criadores, anteriores a Bach, não podem deixar de ser representados em uma discoteca, por menor que seja: os italianos Perluigi da Palestrina (1525-1594) e Claudio Monteverdi (1567-1643), o alemão Henrique Schütz (1585-1672) e o espanhol Tomás Luís de Victoria (1548-1611). Historicamente, Palestrina e Victoria fazem parte do período religioso da Contra-Reforma, onde a música e as artes plásticas também se reformaram para representar a verdade religiosa. A música do culto reformou-se não só no aspecto litúrgico, mas, sobretudo, no aspecto musical. O crítico de música Otto Maria Carpeaux fala sobre este aspecto musical, marcando as diferenças em relação ao período anterior. Escreve o crítico:

Para a verdade religiosa ficar representada, têm os fiéis de entender bem as palavras sacras que o coro canta. Essa exigência exclui inapelavelmente os L'homme armé, Malheur me bat, Se la face e outras melodias profanas que os mestres flamengos tomaram como bases temáticas de suas obras; depois, obriga a reduzir a abundância e suntuosidade de artes contrapontísticas, impedindo também o canto simultâneo de textos diferentes; enfim, essa simplificação da polifonia torna dispensável o apoio do coro em acompanhamento instrumental, de modo que até o órgão pode ficar calado ou então limitar-se a poucos acordes iniciais, à guisa de prelúdio. A música da "Contra-Reforma" é rigorosamente desacompanhada, à capela. Só a voz da criatura humana é digna de louvar o Criador. Eis os elementos básicos do estilo chamado "de Palestrina". 4

As considerações de Carpeaux sobre Palestrina extendem-se à Victoria, pois este foi aluno de Palestrina na Itália, tornando-se assim no principal polifonista da Espanha. Murilo não só inclui estes dois polifonistas do século XVI na discoteca do amador, como dedica um poema a Victoria, que se encontra no livro Tempo espanhol, publicado em 1959. No poema, intitulado "A Tomás Luís de Victoria, músico", o poeta remonta uma polifonia, evocando a polifonia vocal não só de Victoria, mas a dos polifonistas do século XVI. Leia-se o poema:

Capa do livro Tempo espanhol
A TOMÁS LUÍS DE VICTORIA, MÚSICO[de Tempo espanhol, 1955-1958]Victoria, tua força largaAnima o coral do homem agonístico.Não a queda exterior da águaNem o tom polêmico do fogo:Mas lamento encarnado de espanholAo seu Criador limítrofe.Arquitetura polifônica de um céuQue se nutre da matéria humana.Eco elaborado de exigente Espanha,Traduz o cantor no centro essencial da forma,Rigoroso timbre:O homem sustentando as colunas do somSabe ser vencido pela disciplina de VictoriaE seu discurso cromático.

Os versos "Arquitetura polifônica de um céu / Que se nutre da matéria humana" e "O homem sustentando as colunas do som / Sabe ser vencido pela disciplina de Victoria / E seu discurso cromático" mostram a polifonia desacompanhada do instrumental, ou, o que Carpeaux considerou sobre a música da Contra-Reforma que é, rigorosamente, à capela: "Só a voz da criatura humana é digna de louvar o Criador".

Das polifonias vocais à homofonia da ópera: ao período da polifonia vocal segue-se o período Barroco, que buscava a definição de uma voz ou de vozes predominantes na música. A vitória do indivíduo sobre o coro. O idividualismo na música. Pela primeira vez na História, não só as vozes solistas, mas os instrumentos ganham em expressão musical, que é também dramática, cuja expressão maior é a ópera Orfeo (1607), de Claudio Monteverdi. Um dos primeiros orquestradores, Monteverdi concebeu os instrumentos como que reforçados de expressão dramática: no palco, eles abrem a ópera, ambientam os refrãos e ligam as cenas. Murilo Mendes, no seu "Murilograma a Claudio Monteverdi", evoca a expressão dramática da música de Monteverdi. Em vez da arquitetura sonora, como no poema dedicado a Victoria, aqui Murilo constrói o poema pictoricamente através de imagens poéticas, lembrando as cores e os movimentos do teatro:

MURILOGRAMA A CLAUDIO MONTEVERDI[de Convergência, 1963-1966]Fanfarras azuis travestidas em fanfarras vermelhasEmpunhando estandartes verdes travestidos em estandartes brancosAceleram os músculos de jovens mulheres vermelhasTravestidas em jovens mulheres azuis						inclinadas à						ocisão do homem.						Roma 1963

A música feita para Deus: João Sebastião Bach (1685-1750). Bach marca o fim do período Barroco e foi, por excelência, o músico ordenador da polifonia linear. Na polifonia linear, as linhas melódicas são ao mesmo tempo independentes e rigorosamente ligadas. É uma polifonia depurada, toda movimentada pela alternância constante da tensão e da distensão. E é o que Murilo constrói no poema "Murilograma a João Sebastião Bach", direcionada à composição de Bach. Observe-se que os verbos movimentam e tocam o poema; a disposição dos versos evoca o movimento das mãos de quem toca a metáfora contraposta:

Capa do livro Convergencia
MURILOGRAMA A JOÃO SEBASTIÃO BACH[de Convergência, 1963-1966]João Sebastião			mete o som na mãoJoão Sebastião			mete o sol na mãoJoão Sebastião			martelando o órgãoJoão Sebastião			espaventa o górgãoJoão Sebastião			temperando o cravoJoão Sebastião			tolhe-nos o cravoJoão Sebastião			restaurando OrfeuJoão Sebastião			mestre vosso e meuJoão Sebastião			tua vontade louvoJoão Sebastião			movimento novoJoão Sebastião			pule apura podaJoão Sebastião			roda roda rodaJoão Sebastião			ouvido na PaixãoJoão Sebastião			esfera em rotação				Roma 1965

Como no caso desses três músicos, Victoria, Monteverdi e Bach, outros músicos referidos por Murilo em suas crônicas e artigos podem ser vistos à luz de alguns de seus poemas. Mas esses escritos não só revelam informações estéticas sobre o aspecto musical, como foi tratado aqui. Nos comentários sobre os compositores e suas obras, entremeiam-se opiniões "de poeta" reveladoras de seu pensamento estético-intelectual, principalmente da sua divisa, Poesia liberdade. Leia-se, para concluir, o comentário sobre os quartetos de Beethoven, merecedores de duas crônicas em 1946:

Abordar os Quartetos de Beethoven é um dever precípuo de todo o homem que deseja elevar o seu nível cultural. Que o amador comum, isto é, o leigo, não se espante nem desanime com a lenda do hermetismo que se estabeleceu em torno deles. Ao contrário do que escreveu Pierre Jean Jouve, não vemos em Beethoven apenas o homem da Revolução Francesa, o filho espiritual de Rousseau. Sua linguagem sonora parece-nos particularmente própria (sobretudo nos Quartetos) a exprimir a vida moral e espiritual do homem da nossa época, comprimido entre guerras e revoluções, com os nervos à flor da pele diante das contínuas notícias que chegavam (que chegam...) sobre campos de tortura, gritos de terror, existências sufocadas, legiões de homens em marcha para a treva, o desconhecido, o abismo.

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1 Ver "Isidoro da Flauta" e outros trechos de A idade do serrote, livro de memórias escrito entre 1965 e 1966 em Roma.

2 Coletados posteriormente no volume Formação de Discoteca. São Paulo: Giordano, Loyola, Edusp, 1993. Este volume está dividido em duas partes, a intitulada "Formação de Discoteca", que compreende 23 crônicas, e os "Outros artigos sobre música", com sete artigos.

3 Guimarães, Júlio Castañon. Territórios/Conjunções - poesia e prosa críticas de Murilo Mendes. Rio de Janeiro: Imago, 1993, pp. 137-181.

4 Cf. "A polifonia vocal", em: Carpeaux, Otto Maria. Uma nova história da música. 3ª ed. Rio de Janeiro, Ediouro, 1999, p. 33.


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20 de julio de 2009

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